‘O trabalho assalariado não rompe com a questão do opressor e do oprimido’
O
Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES) estima que cerca de três milhões de brasileiros estejam envolvidos hoje em empreendimentos de economia solidária. Na
Cúpula dos Povos,
grande evento da sociedade civil realizado paralelamente à Rio+20, a
economia solidária, também conhecida como ecosol, foi apresentada como
uma das propostas concretas para a crise socioambiental vivida
atualmente pelo planeta. O
FBES vem batalhando desde o
ano passado por uma lei da economia solidária que rompa com os vários
entraves burocráticos que essa outra forma de fazer economia encontra.
Nesta entrevista, realizada em parte durante a Cúpula dos Povos e
complementada por email,
Diogo Ferreira, da coordenação executiva do
FBES,
fala sobre a diversidade de empreendimentos que já existem e situa a
economia solidária no campo da disputa por um outro modelo de
desenvolvimento. Para ele, a ecosol ataca com um dos elementos
fundamentais do capitalismo - a mais-valia.
A entrevista é de
Raquel Júnia e publicada pelo sítio da
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), Fiocruz, 03-08-2012.
Eis a entrevista.Durante a Cúpula
dos Povos, os diversos movimentos sociais, organizações e redes têm
apresentado soluções à crise do planeta. O que propõe a Economia
Solidária?Estamos trazendo a reflexão sobre a
necessidade do trabalho autogestionário, a afirmação de que existem
outras formas de trabalho que não o trabalho com carteira assinada.
Outra questão importante que nós e outras redes estão trazendo é que
existem outros modelos de desenvolvimento possíveis, que partam do
protagonismo social, a partir do local, com base em relações
horizontais. Trazemos essa proposta do que já está acontecendo na
economia solidária no Brasil, como o caso das redes que estão se
desenvolvendo, dos bancos comunitários, dos fundos rotativos, das
experiências de formação e, para, além disso, procuramos refletir sobre a
falta de democracia econômica. Não podemos aceitar que 99% da população
fique à parte de qualquer decisão que a envolva do ponto de vista
econômico, então, esse é um debate maior que a gente traz, junto com a
valorização do trabalhador e da trabalhadora, seja no caso de uma
produção mais justa e saudável, como é o caso da agroecologia que também
é uma bandeira nossa, seja da luta por moradia, da valorização das
mulheres, a necessidade de respeitar os povos tradicionais, um
desenvolvimento que traga tudo isso com base em relações horizontais.
Essa outra proposta de desenvolvimento tem que abranger uma diversidade
muito grande de atores e ações, e o que os movimentos colocam aqui na
Cúpula, não é com base apenas em utopias, mas sim no que estamos fazendo
no dia a dia na cidade e no campo.
Você pode detalhar
como funcionam as experiências de bancos comunitários e também a
diversidade de iniciativas que fazem parte da economia solidária?Os
bancos comunitários
são verdadeiras revoluções locais que acontecem onde a comunidade se
empodera e fala: ‘nós também podemos fazer nossa própria moeda e nosso
próprio sistema financeiro local', e atuam dentro da perspectiva do
desenvolvimento local. Com a moeda social, a renda fica somente na
localidade e tem também uma questão muito simbólica de afirmarmos que o
dinheiro não é fim, mas é meio. A moeda é simplesmente um símbolo de
troca. Quando falamos de banco comunitário, estamos falando não somente
de um empreendimento, mas estamos falando justamente de um modelo de
desenvolvimento justo e solidário numa localidade inteira, numa grande
rede de economia solidária. Então, os bancos comunitários trabalham
desenvolvendo e fomentando ações produtivas locais com base na economia
solidária, na agroecologia, na segurança alimentar, com a moeda própria
para garantir que a renda e a receita da própria comunidade favoreçam o
seu desenvolvimento. A moeda é somente um mecanismo de troca e não uma
finalidade em si mesma. A diversidade da economia solidária se dá em
muitos campos, desde a produção de alimentos de todos os tipos, passando
pelo artesanato e indo para produtos processados e manufaturados como
malhas de algodão orgânico, sapatos, dentre outras coisas. Ou seja, a
economia solidária hoje consegue atender boa parte de nossas
necessidades básicas de consumo. E por falar em consumo, ainda há
diversas experiências no Brasil de grupos de consumo responsável, que
também são empreendimentos de economia solidária. Há ainda formas de
organização variadas, ou seja, os empreendimentos de economia solidária
podem ser associações, cooperativas, grupos informais, empresas
recuperadas. Todos regidos sobre o sistema de autogestão. Muitos se
organizam em redes de produção, comercialização e consumo. Estas
iniciativas estão se norte a sul do país, e envolve pelo menos três
milhões de pessoas no Brasil.
Quantas experiências de bancos comunitários já existem atualmente no país?Cerca
de 80 experiências. Até cinco anos atrás eram apenas 10 experiências e
com o apoio do governo federal. Então a gente vê que quando o governo
federal está disposto a fomentar outro modelo de desenvolvimento a
resposta da sociedade é imediata. O grande desafio é exatamente quebrar a
barreira do pensamento das pessoas de que o dinheiro é um fim em si
mesmo, por isso essa discussão tem um aspecto pedagógico muito
importante, de afirmarmos que a moeda social está ali para promover o
desenvolvimento local, que vale tanto como qualquer outra moeda e que
precisamos fomentá-la. O próprio nome já diz, é um banco da comunidade,
então é a comunidade que define a sua taxa de juros, a quem vai apoiar,
quanto vai disponibilizar, enfim, é um banco deles. Então eles dizem,
por exemplo: ‘a gente quer fomentar a agricultura familiar e não a
agroindústria', eles têm esse potencial. Ainda no campo das finanças
solidárias, tem os fundos rotativos que também são uma grande revolução,
que são os próprios movimentos se financiando, ou seja, guardam os
recursos, investem em suas produções. Isso acontece não somente em
dinheiro, há fundos rotativos de sementes, de animais, no caso dos
agricultores familiares, ou seja, a comunidade percebe que se
articulando e trabalhando junto pode resolver problemas específicos ou
até mais gerais e macroestruturais, com relação ao financiamento da sua
produção e outra forma de fazer economia. Por exemplo, a cooperativa que
faço parte tem um fundo rotativo, a gente conseguiu através de doações
um dinheiro para a compra de equipamentos e o dinheiro desses
equipamentos tem que voltar para a gente investir em outras produções,
mas não é investir por investir, mas sim investir com base numa visão de
que temos que cada vez mais fechar esse ciclo de produção e consumo
dentro dessa rede de economia solidária, de agroecologia, da agricultura
familiar.
Há muita resistência a essas propostas, uma vez que elas acabam ameaçando a hegemonia do sistema financeiro?Atualmente,
a economia solidária tem crescido bastante no Brasil como um todo, é
lógico que quebra paradigmas, mas não por uma questão idealista, mas
pela necessidade real das pessoas. Como a economia ordinária, da ordem
capitalista, não nasceu para incluir, as pessoas sentem necessidade de
encontrar outras formas, e uma dessas formas é a economia solidária, por
isso ela encontra algumas resistências, mas tem crescido bastante,
porque vivemos num momento de crise onde as desigualdades e a exclusão
se acentuam. E a economia solidária entende que todos os temas, como o
da justiça ambiental, da agroecologia, da soberania alimentar, são
complementares. No Encontro de Diálogos e Convergências, que foi um
grande esforço que fizemos no ano passado, nós, de todas essas redes,
nos colocamos todos na condição de humildade para construirmos algo em
comum.
Como vocês avaliam hoje as políticas públicas no
campo da economia solidária nas esferas dos executivos municipais,
estaduais e federal?Hoje cerca de um terço dos Estados
tem leis estaduais de economia solidária. E uma quantidade muito pequena
de municípios tem leis municipais. Para além das leis, que em sua
maioria são bastante tímidas, as políticas públicas de economia
solidária ainda são bastante tímidas, não conseguem promover saltos
qualitativos na realidade dos
EES [Empreendimentos de Economia Solidária]
e não reconhecem a economia solidária como uma outra estratégia de
desenvolvimento. Por isso estamos em campanha pela lei de iniciativa
popular da Economia Solidária. Estamos em processo de coleta de
assinaturas nos estados através dos fóruns. Muitos estão coletando
assinaturas nas plenárias estaduais e em eventos onde a economia
solidária está em pauta. Nossa meta é ter cerca de um milhão de
assinaturas até dezembro deste ano.
A existência de uma
Secretaria Nacional de Economia Solidária [Senaes] no âmbito federal
fortalece os empreendimentos em economia solidária ou a existência da
Secretaria por si só não significa muito? E o Conselho Nacional de
Economia Solidária, qual a relevância desse mecanismo?Temos que reconhecer a importância da
Senaes para
o movimento, está é uma conquista. Mas entendemos que ela apenas não
basta. Precisamos de mais recursos, de mais estrutura para execução das
políticas públicas, dentre outras coisas. Na
II Conferencia Nacional de EcoSol
foi deliberado que precisamos de um Ministério da Economia Solidária, e
é este espaço institucional que buscamos. Mas nossa batalha maior é
para que o direito ao trabalho associado e autogestionário seja não
somente garantido, mas incentivado, a partir da valorização das
iniciativas e saberes locais, dentro de uma outra forma de produção,
comercialização e consumo. Ou seja, batalhamos por uma política pública
que de fato reflita a importância desta outra forma de desenvolvimento
que está acontecendo pelo Brasil.
O
Conselho é um espaço importante de diálogo entre
sociedade civil e governo, além de ser um dos mecanismos de pensarmos as
confluências das políticas públicas. Mas não estamos satisfeitos com
nosso conselho, achamos que ele deve estar num patamar maior, tal como o
Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar], e estar diretamente ligada a presidência.
Quem
defende a economia solidária fala muito sobre o fim da relação entre
patrão e empregado. Mas há um universo muito grande de trabalhadores
assalariados que estão na trincheira da luta por condições dignas de
trabalho e melhores salários, além de se envolverem também em outras
lutas, como da justiça ambiental, por exemplo, e que se posicionam
claramente contra o sistema capitalista. Como a economia solidária
suplanta essa relação de patrão e empregado e pretende dialogar com
esses trabalhadores?Antes de afirmar a questão do
trabalho associativo, é importante deixar claro que a economia solidária
não defende uma precarização do trabalho, muito pelo contrário,
defendemos uma emancipação a partir do trabalho com base no trabalho
associativo e no princípio da autogestão. O trabalho assalariado não
rompe com a questão do opressor e do oprimido, nós queremos romper com
isso propondo outra forma de trabalho onde os trabalhadores sejam donos
de seu próprio negócio de forma coletiva. Muitos acreditam, sobretudo
pessoas de outros países, que o Brasil, por esse modelo de
desenvolvimento que está adotando, tem crescido bastante e está em outro
patamar, mas o que a gente vê é que as favelas estão tão grandes quanto
em outros momentos, que as condições de desigualdade social não
contribuíram para alterar nenhuma estrutura social de poder. Então, a
gente tem que romper com essa estrutura e apresentamos como proposta o
trabalho associativo, baseado na autogestão, quando é possível romper
com a mais-valia, que é um dos males e um dos princípios basilares da
economia capitalista.
Você disse que algumas experiências
de economia solidária revolucionam as relações de trabalho e renda das
populações. Há quem atribua a economia solidária um certo conformismo
com o sistema capitalista, atuando a sua margem, mas sem necessariamente
se organizando para derrubá-lo. Como você vê essa polêmica? A economia
solidária é revolucionária no sentido de almejar o fim do capitalismo e a
construção de outro sistema?Este assunto é complicado e
mesmo no movimento há divergências sobre ele. O fato é que o
capitalismo permeia a vida de todos nós, a economia solidária é uma
forma de contestação deste sistema por dentro dele com base em suas
contradições e contestando um elemento central nele que é a mais-valia.
Além disso, ela consegue ser uma economia mais múltipla do que o
capitalismo, pois envolve a economia mercantil, não mercantil, etc. Se
vai derrubá-lo, ou não, somente a caminhada irá dizer e os contextos que
vão surgir.